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lunedì 27 ottobre 2014

A minha doce amiga Amira

Este é um dos pratos que Amira trazia com tanto
carinho pra minha família! Couscous
marroquino, feito por ela mesma!
Por mais que eu tente parar de pensar nela, eu não consigo! Estou chocada, confusa, incrédula... Penso em toda a doçura que aquela mulher conseguia transmitir com o seu sorriso, penso na delicadeza dos seus gestos, na sua sabedoria e até na engraçada timidez com a qual se aproximou de mim e da minha família.
Eu ainda não entendia nada do seu idioma (procurei aprender justamente para poder nos comunicarmos) e nem ela falava o português ou o italiano! Dez anos na Itália e ela só falava duas palavras em italiano: “Grazie!” (que repetia infinitamente quase como um mantra) e “Buongiorno!”. Mas acreditem, ainda assim, conversávamos por horas e horas e nos compreendíamos muito bem! Falávamos sobre nossas culturas, filhos, maridos, trocávamos conselhos e desabafávamos nossas angústias uma com a outra!
Seu marido não permitia que ela saísse de casa só, os filhos riam dela, o povo aproveitava da sua situação para dar testemunhos e discursos sobre a ”superioridade cultural” que as sociedades ocidentais tinham sobre aquela do seu país, o Marrocos. Eu ouvia tudo o que ela me contava sobre a vida dura das mulheres da sua terra e da sua religião e ficava só imaginando-a aqui, em Salvador, sentada num barzinho com as amigas bebendo tranquilamente e enchendo o marido de desaforos enquanto discutiam a relação! Para nós uma coisa tão justa, mas para ela, um sacrilégio!
Sempre acreditei nos conceitos da ginarquia e a muito tempo anseio por uma sociedade matriarcalista. Como disse recentemente Carlinhos Bronw: “O futuro é primitivo!” e as sociedades mais primitivas eram todas matriarcais e harmoniosas. Mas aí, com a unificação das doze tribos de Judá e o advento de uma religião monoteísta e patriarcal a humanidade começou o seu processo de guerras, confusões e decadências.  Por isso talvez antes de conhecê-la, eu desprezava totalmente mulheres frágeis e submissas. Porém, apesar de todas as barbaridades que ela me contava sobre a realidade da mulher marroquina, eu não conseguia desprezá-la, pelo contrário, eu a admirava!  Como uma mulher conseguia suportar tanta humilhação, tanta privação, tanta injustiça e ainda assim, transmitir às pessoas tanta energia positiva, tanta doçura? Sempre refleti muito sobre tudo isso, sobre qual seria o verdadeiro “poder feminino”.  Nas referências arquetípicas em que eu depositava as minhas teorias sobre a feminilidade, não tinham deusas ou mulheres que não fossem guerreiras! Até mesmo Iemanjá, Oxum, Nanã, Perserfone, Afrodite, Nut, Bastet, Frida, etc..., todas deusas maternais, porém  independentes, ousadas, guerreiras! Mas aí eu comecei a perceber que mesmo que aquela mulher tão frágil e submissa não soubesse, ela estava me dando grandes lições de resignação, humildade, paciência e fé (sim, ela se submetia a todo aquele vexame, porque a sua religião tinha lhe ensinado que aquilo era o que agradava ao seu deus, Alah!), elementos mais que necessários para que possamos ascender verdadeiramente na arte de aprender o Amor, poder maior e mais sublime de todo o Universo!
Desde que voltei para o Brasil, eu sempre pensei nela com muito carinho e muita saudade também! Neste Natal, eu pensava em fazer um jantar árabe com algumas das tantas receitas que ela pacientemente me ensinou: Frango assado com limão, couscous marroquino, bolo de coco...  Ela preparava verdadeiras delícias em casa e sempre batia na minha porta toda feliz com a minha porção e eu retribuía a gentileza com alguns pratos da nossa exótica culinária! Quando lhe dei a notícia da minha decisão de voltar para o Brasil, ela me convidou para um chá maravilhoso na sua casa e se despediu de mim,  como a sua cultura lhe havia ensinado a se despedir
dos parentes e amigos mais próximos que partiam para terras distantes! Imaginem que ela fez até um bolo de coco que eu adorava e me trouxe ele,  todo enroladinho em um pano de prato, dizendo que era pra eu comer no avião, durante a viagem, para me lembrar sempre da minha “mãe árabe” e desejar voltar a revê-la!
Ontem amigos, eu recebi a notícia da sua morte, ou melhor, do seu suicídio! O marido decidiu casar suas duas filhas Sarah e Malica, com dois velhos marroquinos e ela, ousou desobedecê-lo escondendo a mais nova das meninas, a Sarah que hoje deve ter 18 anos, ninguém sabe onde. Seu marido a agrediu por todo um dia sem que ninguém na cidade ousasse se intrometer para defendê-la, e no dia seguinte, ela se atirou da janela de sua casa, caindo bem em frente a casa onde eu morava quando éramos vizinhas.
Pobre Amira, morreu por desobedecer a cultura que ela tanto defendia! Morreu para que sua filha pudesse ousar tudo aquilo que ela nunca ousou. Vítima do machismo, Amira morreu para defender o direito que suas meninas tinham de ser mulheres marroquinas do século XXI.  Morreu por amor!
Amiga Amira, e você pensando que eu só me lembraria de você, por causa de um bolo...  Que o teu Alah te receba e te deixe gozar do paraíso que você sempre sonhou, enquanto penava no inferno em que viveu!

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